Morri pela primeira vez há 15 anos. Primeiro ficou tudo preto. Então abri o olho e percebi que estava no céu. Não no Paraíso, mas no céu mesmo, caindo de costas a 100 km/h. Lá em cima, bem longe, tinha um negócio preto. Era o avião de onde eu tinha saltado.
Mas essa não era uma informação relevante naquele momento. Minha consciência já tinha esquecido que, 3, 4 segundos antes eu estava sentado na porta do avião com as pernas para fora, esturricado de medo. A mochila do paraquedas ficava enganchada no piso do avião por uma corda de uns três metros. Quando você se jogasse, não precisava fazer nada: a corda abria o paraquedas sozinha. É o único jeito de saltar pela primeira vez sem o incômodo de ter um instrutor atrás. Deixar o acionamento da coisa por conta de um paraquedista de primeiro salto é pedir pra dar merda: dá que o cabaço entra em pânico e apaga no ar?
Foi precisamente o que aconteceu comigo. O instrutor, que ficava no avião orientando a gente sobre como se jogar lá de cima do jeito certo, deve ter sacado que esse seria o meu destino logo que me chamou para a porta, com uma firmeza militar:
– Paraquedista número um!
Quem salta pela primeira vez é sempre o “número um”, o que sai primeiro do avião. Talvez para que não fique paralisado de medo ao ver os outros paraquedistas se desmaterializarem no ar. Mas não precisei desse estímulo negativo para acabar dominado pela paúra. A minha covardia bastava:
– Não. Não vou.
Ele fingiu que não ouviu:
– Número um! Qual a altitude?
Era a senha para dizer que o procedimento para o salto tinha começado. Primeiro o cara pergunta a altitude. Você olha no altímetro de pulso, responde “Seis mil pés!”. Faz uma contagem regressiva e grita “Sela!”. “Sela” é o nome técnico daquela posição em que os paraquedistas saltam, com os braços e as pernas bem abertos, para ficarem estáveis no ar. E quando você visse, já estava do lado de fora. Mas não. Comigo isso não ia funcionar.
– Esquece, meu. Desisti. É loucura. Vocês vão e eu fico. Pode deixar.
– Número um…
– Ahn.
– Se você está aqui é por um motivo. Você pode nem saber o que é. Mas, se desistir, esse motivo vai continuar te atormentando. É uma frustração que vai ficar para sempre… Altitude??
– Seis mil pés!
– Contagem!
– Três, dois…
Saltei no um. Antes de gritar “Sela!”. Nem gritei nem assumi a posição que deixa os paraquedistas estáveis. Logo que o meu cérebro percebeu que o dono dele tinha se jogado de dois quilômetros de altura entrou em modo suicídio. Perdi o controle sobre os membros. Caí com a destreza de um saco de batatas. E ficou tudo preto.
Então abri o olho e percebi que estava no céu. Mas não senti medo. Não senti nada. Era um vácuo emocional. Até percebi que estava caindo de costas para o chão. Também discerni o avião lá em cima, ficando cada vez mais longe… Mas o cérebro estava basicamente desligado. Talvez seja alguma válvula, alguma coisa, que diz “agora que fodeu, deixa quieto”. E te deixa numa catatonia pacífica. Transforma você num Buda em queda livre. E aí…
BUM!!!!
Era o paraquedas abrindo. A força puxou meu corpo para cima e o meu cérebro ligou no tranco. O Buda tinha morrido. Agora eu era o Neo acordando sem ar no líquido amniótico da Matrix. Era a Uma Thurman tonando aquela injeção de adrenalina no tórax no Pulp Fiction. A descarga química foi tão violenta que não deixou um milímetro de fresta para medo. O gerente de logística da minha cabeça, um incompetente notório, estava a mil. Mais focado que um supervisor da FedEx. Ele viu que o paraquedas tinha aberto com os fios todos enrolados. E nem quis saber. Já mandou as minhas mão pro meio dos fios de nylon para desembaraçar tudo. Os fios desenrolaram fazendo o meu corpo girar que nem um peão lá no alto. E nada de medo. Meu centro de recompensa, uma parte no meio do cérebro do tamanho de um amendoim, me recompensou com uma descarga inédita de dopamina. Recompensa por estar vivo, acho. Era tanta dopamina que fiquei idiota:o paraquedas prende o seu corpo pela pelvis. E você fica badalando no ar como se fosse um bebê de desenho animado antigo, daqueles que a cegonha solta no ar com um paraquedas preso na fralda. Lembrei dessas cenas e comecei a rir sozinho. Bobo-alegre total.
E aí veio a parte mais legal: mexer nas alças que manobram o “velame” (a lona do paraquedas). Você puxa as duas alças juntas e o negócio entra em queda livre. Você fica com o estômago na boca, como se estivesse numa montanha russa. Quando você puxa uma alça só, vira o Superman. Fica obrigatoriamente com um braço lançado para a frente e os punhos cerrados. E como você não está enxergando o velame, se sente voando sozinho no ar, meio de lado. E controlando a direção. Superman.
Depois de 10 minutos brincando pousei suave, na ponta dos pés, que nem uma bailarina. Esse pouso, aliás, foi o meu único sucesso esportivo da vida. Os anos todos descendo do ônibus antes que ele freasse totalmente se fizeram valer… E caramba: quando olhei pro alto naquele segundo e realizei que tinha viajado lá de cima até o chão me senti como se tivesse escalado o Everest. Ainda que ao contrário, hehe.
Bom, depois disso não virei paraquedista. Nem em montanha russa eu vou. Continuo tão covarde pra essas coisas quanto no dia em que saí da maternidade. O que não saiu mesmo da minha cabeça foi o que eu senti depois da bronca do instrutor. Ali ficou claro que a segurança, a zona de conforto, às vezes é o pior dos mundos. E que se aferrar a essa zona de segurança pode te matar bem antes da morte propriamente dita.
FONTE: http://super.abril.com.br/blogs/crash/a-primeira-vez-em-que-eu-morri/
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